Teste do pezinho por Andreia Pereira JN Magazine 17 de Maio
Em 1979, o Instituto de Genética Médica dava os primeiros passos na implementação do diagnóstico neonatal no país. No início, o rastreio implicava apenas a detecção de casos de fenilcetonúria – uma doença rara, cujo tratamento passa pela adopção de uma dieta restritiva em proteínas. Hoje, volvidas três décadas, já é possível diagnosticar 25 doenças de foro genético e metabólico com o teste do pezinho. O tempo veio dar razão aos mentores do Programa Nacional do Diagnóstico Precoce: uma gota de sangue, obtida através de uma simples picada, pode mudar o rumo de uma vida.
Em Portugal, o Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) tem, actualmente, uma taxa de cobertura de 99,4 por cento. E, embora não seja obrigatório, o teste neonatal funciona graças à elevada adesão dos pais.
Em 1979, quando o professor Jacinto Magalhães, o médico que «deu» o seu nome ao actual Instituto de Genética Médica (IGM), se aventurou no rastreio da fenilcetonúria a nível nacional, muitas vozes se ergueram contra a iniciativa com o argumento de que Portugal não tinha capacidade para seguir em frente.
Com perseverança, provou-se que esta causa valia a pena. Um estudo de impacte económico, elaborado no final da década de setenta, indicava que «o Estado tinha encargos sessenta vezes superiores com uma criança deficiente, do que se subsidiasse um programa nacional de rastreio», esclarece Rui Vaz Osório, aludindo aos casos de fenilcetonúria e do hipotiroidismo congénito.
Actualmente, e graças ao Tandem Mass, um equipamento que chegou ao IGM em 2001, consegue-se diagnosticar 25 doenças com apenas uma gota de sangue, colhida durante o teste do pezinho. E se o objectivo inicial era evitar os atrasos mentais profundos, provocados pelas duas primeiras doenças rastreadas, hoje em dia já é possível afirmar, taxativamente, que este teste salva vidas. Até porque, como explica o coordenador, «muitas das patologias que se detectam no diagnóstico neonatal podem conduzir ao coma ou mesmo à morte».
E depois?
Francisco nasceu em Junho de 1999. E, como qualquer recém-nascido, foi submetido ao teste do pezinho, um exame de diagnóstico neonatal realizado, idealmente, entre o terceiro e quinto dia de vida. Embora não tenha coincidido com a data de nascimento, o dia da picada pode ser considerado o primeiro dia do resto da sua vida.
Isto porque, aparentemente, e apesar de nada levantar suspeitas, o arquitecto Rui Barros Silva tomava conhecimento de que o seu filho sofria de uma doença metabólica. O diagnóstico precoce permitiu que esta criança pudesse iniciar o tratamento dietético imediato da fenilcetonúria. Graças ao teste do pezinho, Francisco, hoje com 10 anos, tem um quotidiano igual ao da maioria das crianças da sua idade. A excepção é a dieta restritiva, que tem de cumprir à risca para o resto da vida.
Hoje, já fala da doença com todo o à-vontade, mas, quando recorda os minutos em que soube da notícia, Rui Barros, também presidente da Apofen (Associação Portuguesa de Fenilcetonúria e outras doenças metabólicas), afirma ter sentido um «abalo»: «O primeiro ano foi muito preocupante, porque estamos a aprender a lidar com a patologia», reitera. Valeu-lhe o apoio incondicional de toda a equipa multidisciplinar do IGM, nomeadamente a nutricionista, a quem recorria sempre que surgia uma dúvida.
O caso de Francisco é semelhante ao de 270 crianças, a quem foi diagnosticada a fenilcetonúria desde a implementação do teste do pezinho em Portugal.
«Fenil o quê»?
Ao receber o telefonema do IGM, Rui Barros confessa ter ficado um pouco atordoado com a informação que lhe fora transmitida. Admite que, quando foi convocado para uma reunião com Rui Vaz Osório (o médico encarregava-se de esclarecer, pessoalmente, os pais sobre a doença), a língua enrolou-se e mal conseguia pronunciar o palavrão: fenilcetonúria. A cabeça estava repleta de dúvidas. Era uma cascata de perguntas, umas atrás das outras. Afinal, como qualquer pai, só queria perceber como poderia dar o melhor ao seu filho.
Logo percebeu que esta patologia resulta de uma desordem genética, em que, devido à ausência ou defeito de uma enzima responsável pelo metabolismo da fenilalanina, esta última acumula-se na corrente sanguínea. E, deste modo, funciona como um «veneno», já que a sua acção vai danificar a bainha de mielina: um invólucro dos neurónios. Com os «ataques» consecutivos da fenilalanina, os neurónios vão sendo, gradualmente, afectados. É esta a justificação avançada pelos especialistas para o aparecimento de danos mentais a longo prazo.
«Se a dieta não for cumprida, desde os primeiros dias de vida, a arquitectura cerebral fica comprometida, porque até aos seis anos o sistema nervoso central está em construção. Os elevados níveis de fenilalanina influenciam ainda os neurotransmissores, responsáveis pela actividade do cérebro», fundamenta Friedrich K. Trefz, docente da cadeira de Pediatria na Universidade de Tübingen (Alemanha).
Máximo controlo
A educação alimentar de Francisco é em tudo semelhante à de Neuza Domingues Rosa, portadora de fenilcetonúria. Esta jovem de 24 anos lembra que a sua dieta sempre foi escrupulosamente respeitada, porque a família estava ciente de que um passo em falso podia comprometer o desenvolvimento de Neuza. «A minha mãe nunca brincou com a saúde», confirma.
Apesar da «convivência pacífica» com a doença, esta jovem sente que passou por alguns momentos de «crise». Nas festas de aniversário, para as quais era convidada, achava não ter motivos de festejo, porque toda a comida era «imprópria» para o seu organismo: «Acabei por recusar a participação em festas. Existem alturas na adolescência em que ficamos revoltadas e nos queremos esconder por causa das nossas diferenças», indica.
A fase da adolescência é «um período de rápido desenvolvimento cognitivo, social e emocional e de mudança física». Estas alterações tendem a «ter um impacte por vezes dramático na gestão da doença» e, sobretudo, na adesão ao tratamento. «Ensinar aos jovens um modo de lidar confortável e assertivamente com a pressão dos pares e exigências sociais, e ainda assim aderir às exigências impostas pelo tratamento, é uma abordagem fundamental junto desta população, evitando que possam vir a negar ou negligenciar os seus cuidados de saúde e a criar um sentimento de diferença em relação aos seus pares», completa Carla Maria Carmona.
Dieta para a vida
Carne, peixe, ovos, produtos lácteos. Eis alguns exemplos de produtos «proibidos» para os doentes fenilcetonúricos. «Todos os alimentos ricos em proteínas, seja de origem vegetal ou animal, têm de ser evitados», sublinha a nutricionista Berta Alves (vice-presidente da Apofen). Então, o que podem estes doentes consumir? «Para além do consumo de fruta, legumes, arroz e batata, existe uma série de produtos alternativos que contabilizam um baixo teor de fenilalanina e outros aminoácidos.»
Estes alimentos, dos quais os doentes dependem 365 dias por ano, podem ser adquiridos – mediante receita médica passada por um especialista dos centros de tratamento de referência – no IGM e sem qualquer custo associado. Como se trata de bens «especiais», os pais destas crianças e adolescentes necessitam de ser ajudados, a fim de poderem tirar todo o partido dos produtos.
Foi com o objectivo de promover a confecção destes «novos» alimentos que surgiu a Escola de Cozinha e os Livros de Receitas. «Quando a criança começa a diversificar a alimentação, é preciso criatividade na cozinha. E, nesse aspecto, a Escola de Cozinha dá uma mãozinha.» A iniciativa partiu da nutricionista do IGM, Manuela Almeida, há 15 anos. Para ajudar os pais que residem fora do Grande Porto, a Apofen, que entretanto assumiu essa missão, já percorreu quatro capitais de distrito: Porto, Coimbra, Lisboa e Faro.
Nestas «aulas de culinária», os pais aprendem «pequenos truques» e até noções básicas sobre o uso da balança digital. Pois, quando se fala em portadores de fenilcetonúria, tudo tem de ser pesado ao miligrama. Uma vez que o consumo de pão e das massas é controlado, os profissionais da Escola de Cozinha ensinam a preparar um pão «especial» com farinhas próprias para estes doentes.
No meio de receitas, há alguns segredos que Berta Alves desvenda. E quem disse que não é possível fazer omeletas sem ovos está redondamente enganado: «Com substituto de ovo (um pó com coloração amarela que, quando misturado em água ganha uma consistência e aspecto como a clara em castelo) fazemos uma adaptação às fórmulas gastronómicas tradicionais. Até bolos podemos confeccionar.»
Primeiro medicamento a caminho
Em Dezembro de 2008, foi aprovado na Europa o primeiro e único medicamento para o tratamento da fenilcetonúria. A saptropterina (forma sintética do BH4), comercializada pela Merck Serono, poderá permitir que os doentes de grau moderado tenham uma dieta mais aberta. Mas, explica Rui Barros, «dentro deste grupo, apenas trinta por cento poderão ter uma resposta positiva ao BH4».
Rui Vaz Osório acrescenta que a saptopterina poderá «melhorar a metabolização da fenilalanina», em doentes com uma quantidade residual da enzima funcionante (PHA: fenilalanina hidroxilase). Este fármaco, apesar de «permitir uma alimentação menos restritiva, não substitui a dieta». Neste momento, o medicamento está em fase de aprovação pelo Ministério da Saúde e aguarda luz verde para uma eventual comparticipação.
Dos EUA para o resto do mundo
Graças à descoberta de Robert Guthrie, nos anos sessenta, o rastreio neonatal é hoje realizado de modo sistemático a nível mundial. O pediatra norte-americano percebeu que «era possível colher gotas de sangue em papel de filtro e deixar secar», explica Rui Vaz Osório.
Uma belíssima síntese a consultar na íntegra aqui